“Nunca encontrei o abrigo que ainda procuro, uma mão que me
feche no seu interior e me guarde no bolso de dentro do casaco, paredes que me
digam com veludo: descansa, menino. Mas procuro, continuo, como se acreditasse
que vou encontrar”.
José Luís Peixoto, em “Livro”.
Tenho lido muito estes últimos meses. Nos
livros, em vários, tenho encontrado o conforto de olhar outras vidas sem fazer
parte delas; encontrá-las quando e onde me apetece; ter a liberdade de montar
os cenários descritos como me melhor me apraza. Tenho-lhes gratidão, a todos.
Mesmo àqueles que simplesmente me fizeram uma boa companhia, sem se aproximarem
da minha pele e estabelecerem qualquer tipo de intimidade comigo.
“Livro” foi o último livro que li. E com este
tive intimidade, desde logo. Trespassou-me a pele e chegou-me aos sentidos,
aqueles que nos fazem sentir. E aconteceu-me o que já há muito não me
acontecia: olhar para estas duas frases transcritas, e reolhar, e mais uma vez,
e outra, e ficar com o coração a bater e a lacrimejar de emoção, e sentir que o
autor conseguiu mesmo dizer aquilo, aquilo que eu sinto, que senti tantas
vezes, que tantas vezes ouvi os outros dizerem que sentiam, ver nos atos e nos
olhos que ainda sentem, e o quão aquilo me é verdade, o quão eu acho que é verdade
nos outros. Mas nem eu nem nenhum outro conseguimos dizer assim, exatamente
assim, e assim como o autor escreveu é exatamente assim que é. (vou trata-lo
por José; o formalismo de “autor”, para quem sabe e traduz em palavras uma
coisa que faz tão parte de mim, deixa-me desconfortável).
Não por pudor em falar de mim, mas porque em
mim ainda não consigo falar, falarei de como o vi em outros. A falar de mim sairiam
sons, palavras soltas, e eu ainda estou na fase de montagem disto tudo, para
chegar a uma imagem passível de descrita a quem quiser ouvir. Lá chegarei.
Mas noutros já vi esta imagem, montada. Vi-a
sempre que vi sofrimento. Sempre. Qualquer sofrimento (como se o sofrimento
fosse um membro de uma família numerosa, tão numerosa quanto os indivíduos que
constituem toda a Humanidade, e não fosse apenas “O” sofrimento). Qualquer que
fosse a fonte do sofrimento.
Quando chegamos ao choro de todas as nossas
células, cujo choro dos olhos está longe de abarcar toda essa imensidão do
sentir da dor, queremos aquela mão, aquele bolso, daquele casaco, aquelas
paredes de veludo, aquelas palavras; tudo, assim, exatamente assim, como o José
escreveu. Era só isso, mesmo só isso. Mas isso, exatamente isso, ainda ninguém
sentiu.
Porque ainda ninguém se lembrou de inventar
casacos grandes, com bolsos grandes, se calhar. E a mão? A mão… Pois, a mão. A
mão capaz de nos fechar no seu interior. Pois.
A mão, esta mão, não chega a chegar. Mas
muitas vezes chega uma outra mão (que não é aquela) em forma de adormecimento.
O choro sabiamente nos incha os olhos, uma premissa autoritária de os fecharmos
e adormecermos. E com o sono vem o dia seguinte, ou outros dias seguintes. Em
que ainda não encontrámos a tal mão, mas que também sentimos que já não
precisamos assim tanto dela. Porque começam a passar em rodapé, timidamente,
todas as coisas que, não sendo A mão, Aquela mão, nos aconchegam. E passados
uns dias, ou uns tempos, não só essas coisas nos aconchegam, como nos fazem
sorrir. E ainda passados outros tempos, essas coisas não só nos fazem sorrir,
como nos fazem rir. E passados mais outros, não só nos fazem rir, como nos dão
alegria, mesmo à séria.
Até que, espiralando
(movimento incontrariável da vida), nos voltamos a encontrar com “O”
sofrimento, e lá voltamos a querer aquilo que o José encontrou no meio de
tantas palavras. E lá voltamos a esquecer que algum dia precisámos daquilo que
o José encontrou no meio de tantas palavras. E lá voltamos a precisar. E a não
precisar.
E espiralamos.
E voltamos a
espiralar.
Joana Pires, Setembro de 2012
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