domingo, 9 de setembro de 2012

"Livro"


“Nunca encontrei o abrigo que ainda procuro, uma mão que me feche no seu interior e me guarde no bolso de dentro do casaco, paredes que me digam com veludo: descansa, menino. Mas procuro, continuo, como se acreditasse que vou encontrar”.

José Luís Peixoto, em “Livro”.

Tenho lido muito estes últimos meses. Nos livros, em vários, tenho encontrado o conforto de olhar outras vidas sem fazer parte delas; encontrá-las quando e onde me apetece; ter a liberdade de montar os cenários descritos como me melhor me apraza. Tenho-lhes gratidão, a todos. Mesmo àqueles que simplesmente me fizeram uma boa companhia, sem se aproximarem da minha pele e estabelecerem qualquer tipo de intimidade comigo.

“Livro” foi o último livro que li. E com este tive intimidade, desde logo. Trespassou-me a pele e chegou-me aos sentidos, aqueles que nos fazem sentir. E aconteceu-me o que já há muito não me acontecia: olhar para estas duas frases transcritas, e reolhar, e mais uma vez, e outra, e ficar com o coração a bater e a lacrimejar de emoção, e sentir que o autor conseguiu mesmo dizer aquilo, aquilo que eu sinto, que senti tantas vezes, que tantas vezes ouvi os outros dizerem que sentiam, ver nos atos e nos olhos que ainda sentem, e o quão aquilo me é verdade, o quão eu acho que é verdade nos outros. Mas nem eu nem nenhum outro conseguimos dizer assim, exatamente assim, e assim como o autor escreveu é exatamente assim que é. (vou trata-lo por José; o formalismo de “autor”, para quem sabe e traduz em palavras uma coisa que faz tão parte de mim, deixa-me desconfortável).

Não por pudor em falar de mim, mas porque em mim ainda não consigo falar, falarei de como o vi em outros. A falar de mim sairiam sons, palavras soltas, e eu ainda estou na fase de montagem disto tudo, para chegar a uma imagem passível de descrita a quem quiser ouvir. Lá chegarei.

Mas noutros já vi esta imagem, montada. Vi-a sempre que vi sofrimento. Sempre. Qualquer sofrimento (como se o sofrimento fosse um membro de uma família numerosa, tão numerosa quanto os indivíduos que constituem toda a Humanidade, e não fosse apenas “O” sofrimento). Qualquer que fosse a fonte do sofrimento.

Quando chegamos ao choro de todas as nossas células, cujo choro dos olhos está longe de abarcar toda essa imensidão do sentir da dor, queremos aquela mão, aquele bolso, daquele casaco, aquelas paredes de veludo, aquelas palavras; tudo, assim, exatamente assim, como o José escreveu. Era só isso, mesmo só isso. Mas isso, exatamente isso, ainda ninguém sentiu.
Porque ainda ninguém se lembrou de inventar casacos grandes, com bolsos grandes, se calhar. E a mão? A mão… Pois, a mão. A mão capaz de nos fechar no seu interior. Pois.

A mão, esta mão, não chega a chegar. Mas muitas vezes chega uma outra mão (que não é aquela) em forma de adormecimento. O choro sabiamente nos incha os olhos, uma premissa autoritária de os fecharmos e adormecermos. E com o sono vem o dia seguinte, ou outros dias seguintes. Em que ainda não encontrámos a tal mão, mas que também sentimos que já não precisamos assim tanto dela. Porque começam a passar em rodapé, timidamente, todas as coisas que, não sendo A mão, Aquela mão, nos aconchegam. E passados uns dias, ou uns tempos, não só essas coisas nos aconchegam, como nos fazem sorrir. E ainda passados outros tempos, essas coisas não só nos fazem sorrir, como nos fazem rir. E passados mais outros, não só nos fazem rir, como nos dão alegria, mesmo à séria.

Até que, espiralando (movimento incontrariável da vida), nos voltamos a encontrar com “O” sofrimento, e lá voltamos a querer aquilo que o José encontrou no meio de tantas palavras. E lá voltamos a esquecer que algum dia precisámos daquilo que o José encontrou no meio de tantas palavras. E lá voltamos a precisar. E a não precisar.

E espiralamos.

E voltamos a espiralar.



Joana Pires, Setembro de 2012




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