quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Polaridades!


Ao ler o texto da Ana (cuja inteligência humorística me fez notar a seriedade dos meus textos, por comparação, e me fez querer que ela escreva mais vezes), surgiu-me logo a evidência de que, de facto, nós vivemos baseados na dualidade, na equação constante dos opostos, na descoberta de novos caminhos (dentro e fora de nós) quando as agudezas polarizadas da vida nos atingem.


Precisamos da noite para que surja o dia; precisamos de saber o que é chorar, para também sabermos o que é rir; precisamos de saber o que é ter, para sabermos o que é perder; precisamos dos pólos do Bom e do Mau para nos irmos situando na vida; precisamos de conseguir dormir, para que seja possível acordarmos; precisamos da mãe má e da mãe boa para encontrarmos a verdadeira mãe algures.

E estas polaridades todos temos, todos mesmo. Somos más mães e boas mães, em momentos diferentes; e pais; e trabalhadores; e amigos; e … Umas coisas numas alturas, outras noutras. E é exatamente por isto que eu acho que os criadores (do que quer que seja) vão ao fundo dos opostos: para que eles nos ecoem, bem ou mal. Se as coisas estiverem na esfera do mediano, não nos fazem sentir coisa nenhuma. Lemos, ou vemos, ou ouvimos, e passou. Mas sempre que vemos os grandes feitos ou as grandes atrocidades dos Homens, aí a nossa barriga ou expande ou se encolhe, mas não fica indiferente.

Esta constatação levou-me a outro sítio, que é o que realmente me inquieta: porquê? Porque é que nós, humanos, precisamos de ficar às escuras para valorizarmos a luz? Porque é que temos de sentir solidão para valorizarmos quem nos rodeia? Porque é que precisamos de estar sempre a falar nas coisas, balizando-as como boas ou más? Seja o governo, seja o vizinho, seja a praia, seja o trabalho,…

E concluo que não precisamos. É o caminho quase automático que todos percorremos; mas não precisamos de o fazer. A partir do momento em que paramos e tomamos consciência de que a dualidade É, Existe, e pronto, podemos escolher viver e explorar o caminho que liga um oposto ao outro. E aí já estamos concentrados algures no caminho entre o “bom e o mau”, seja mãe, seja o que for, a experimentar coisas novas, cores novas, com a viva tranquilidade da distância das polaridades.

Acredito que isto é possível, e acredito que isto nos pode trazer Paz de Espírito – por pararmos a roda frenética do consumo (consumo de juízos de valor, de críticas, de passeios, de ideias, de amores, de sapatos, de jantares, de sentimentos arrebatadores, de dores e felicidades agudas …. De tudo). E quando paramos, será que se instala o vazio? Acho que o primeiro sentimento se assemelha a isso, sobretudo por ser desconhecido, e o desconhecido causar medo, e o medo causar vazio. Mas depois vem a tranquilidade de se estar e ser simplesmente onde se está e é. E fica monótono? Só fica se nos desligarmos da vida, da vida natural. Porque nada do que vive é monótono, jamais.

Ainda não sei bem como se faz. Mas sei que quero um dia saber. Sem ter de virar monja nos Himalaias, e deixar de ter cabelo comprido, e deixar de trabalhar, e ter um filho, e família, e amigos, e deveres e direitos enquanto cidadã, e irritações, e grandes e pequenos prazeres da vida. Este é o meu grande desafio: viver humanamente, mas sem precisar da dureza das polaridades para me encontrar e encontrar os outros.


Joana Pires, Agosto de 2012


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domingo, 9 de setembro de 2012

"Livro"


“Nunca encontrei o abrigo que ainda procuro, uma mão que me feche no seu interior e me guarde no bolso de dentro do casaco, paredes que me digam com veludo: descansa, menino. Mas procuro, continuo, como se acreditasse que vou encontrar”.

José Luís Peixoto, em “Livro”.

Tenho lido muito estes últimos meses. Nos livros, em vários, tenho encontrado o conforto de olhar outras vidas sem fazer parte delas; encontrá-las quando e onde me apetece; ter a liberdade de montar os cenários descritos como me melhor me apraza. Tenho-lhes gratidão, a todos. Mesmo àqueles que simplesmente me fizeram uma boa companhia, sem se aproximarem da minha pele e estabelecerem qualquer tipo de intimidade comigo.

“Livro” foi o último livro que li. E com este tive intimidade, desde logo. Trespassou-me a pele e chegou-me aos sentidos, aqueles que nos fazem sentir. E aconteceu-me o que já há muito não me acontecia: olhar para estas duas frases transcritas, e reolhar, e mais uma vez, e outra, e ficar com o coração a bater e a lacrimejar de emoção, e sentir que o autor conseguiu mesmo dizer aquilo, aquilo que eu sinto, que senti tantas vezes, que tantas vezes ouvi os outros dizerem que sentiam, ver nos atos e nos olhos que ainda sentem, e o quão aquilo me é verdade, o quão eu acho que é verdade nos outros. Mas nem eu nem nenhum outro conseguimos dizer assim, exatamente assim, e assim como o autor escreveu é exatamente assim que é. (vou trata-lo por José; o formalismo de “autor”, para quem sabe e traduz em palavras uma coisa que faz tão parte de mim, deixa-me desconfortável).

Não por pudor em falar de mim, mas porque em mim ainda não consigo falar, falarei de como o vi em outros. A falar de mim sairiam sons, palavras soltas, e eu ainda estou na fase de montagem disto tudo, para chegar a uma imagem passível de descrita a quem quiser ouvir. Lá chegarei.

Mas noutros já vi esta imagem, montada. Vi-a sempre que vi sofrimento. Sempre. Qualquer sofrimento (como se o sofrimento fosse um membro de uma família numerosa, tão numerosa quanto os indivíduos que constituem toda a Humanidade, e não fosse apenas “O” sofrimento). Qualquer que fosse a fonte do sofrimento.

Quando chegamos ao choro de todas as nossas células, cujo choro dos olhos está longe de abarcar toda essa imensidão do sentir da dor, queremos aquela mão, aquele bolso, daquele casaco, aquelas paredes de veludo, aquelas palavras; tudo, assim, exatamente assim, como o José escreveu. Era só isso, mesmo só isso. Mas isso, exatamente isso, ainda ninguém sentiu.
Porque ainda ninguém se lembrou de inventar casacos grandes, com bolsos grandes, se calhar. E a mão? A mão… Pois, a mão. A mão capaz de nos fechar no seu interior. Pois.

A mão, esta mão, não chega a chegar. Mas muitas vezes chega uma outra mão (que não é aquela) em forma de adormecimento. O choro sabiamente nos incha os olhos, uma premissa autoritária de os fecharmos e adormecermos. E com o sono vem o dia seguinte, ou outros dias seguintes. Em que ainda não encontrámos a tal mão, mas que também sentimos que já não precisamos assim tanto dela. Porque começam a passar em rodapé, timidamente, todas as coisas que, não sendo A mão, Aquela mão, nos aconchegam. E passados uns dias, ou uns tempos, não só essas coisas nos aconchegam, como nos fazem sorrir. E ainda passados outros tempos, essas coisas não só nos fazem sorrir, como nos fazem rir. E passados mais outros, não só nos fazem rir, como nos dão alegria, mesmo à séria.

Até que, espiralando (movimento incontrariável da vida), nos voltamos a encontrar com “O” sofrimento, e lá voltamos a querer aquilo que o José encontrou no meio de tantas palavras. E lá voltamos a esquecer que algum dia precisámos daquilo que o José encontrou no meio de tantas palavras. E lá voltamos a precisar. E a não precisar.

E espiralamos.

E voltamos a espiralar.



Joana Pires, Setembro de 2012




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